Cesare Lombroso 1835 a 1909. Legista italiano do final do século XIX e início do XX defendia ter os criminosos genética de bandido e características de negro e índio, sendo as favelas e periferias do mundo o local onde tal
A polícia contemporânea ainda se utiliza das mesmas cores da antiga Veraneio.
Por muitos anos a censura da ditadura militar proibiu a publicação de infinitas músicas devido conteúdo de letras consideradas subversivas. Atingia não somente o segmento musical, mas também a literatura, o teatro e o cinema. A crítica severa de intelectuais especializados em arte de certo modo também fez muitos projetos artísticos caírem por terra, antes mesmo de serem sequer publicados. A questão é que a censura acabou e a crítica da arte made in Brazil parece estar submersa. Após muitas pesquisas, por exemplo, de uma flagrante letra preconceituosa do rock nacional, nada encontrei que apontasse qualquer crítica menor ou maior ao conteúdo de Veraneio Vascaína, concebida por ocasião do grupo de Renato Russo pré Legião Urbana, Aborto Elétrico. Discuti com um dos detentores de direitos conexos da mesma, Loro Jones (ex-integrante do Capital Inicial e que gravou as guitarras da track), acerca da discriminação contra o pobre, flagrantemente contida na letra . Nem sequer entrei no preconceito contra policiais honestos que fazem contra-ponto com a banda podre da polícia. Contudo, mesmo não sendo autor, Loro defendeu de forma aguerrida, porém, sem qualquer fundamentação que afastasse ou derrubasse a crítica que irei apontar abaixo.
Renato Russo e Flávio Lemos são os compositores do hit gravado pelo Capital Inicial, Veraneio Vascaína. Além de apontar problemas de repressão do baixo regime militar, pois este estava em decadência, a canção traz algo mais do que uma simples crítica de rockeiros rebeldes. Contêm o que qualquer estudante de Direito conhece muito bem, uma visão lombrosiana da classe menos favorecida (Lombrosiana por fazer alusão inconsciente a Cesare Lombroso, legista italiano do final do século XIX e início do século XX, que defendia ter os criminosos genética de bandido e características de negro e índio, sendo as favelas e periferias do mundo o local onde tal gen seria desenvolvido. Em outras palavras, o criminoso já nascia com o gen de bandido por ser negro e pobre). Indo direto à vaca fria, a música tem trechos pleonásticos e uma estrofe pesadamente discriminatória nos moldes de Lombroso. São, respectivamente:
a) Cuidado pessoal lá vem vindo a veraneio ... e
b) Porque pobre quando nasce com instinto assassino,
sabe o que vai ser quando crescer desde menino.
Ladrão p´ra roubar, ou marginal p´ra matar.
Papai, eu quero ser policial quando eu crescer.
a) Na primeira linha a licença poética vai escusar o pleonasmo de lá vem vindo... Além da frase seguir o exemplo pleonástico no mesmo sentido de descer para baixo ou subir para cima, o trecho ainda tem cacofonia ao formar a palavra lavem nesse ponto. Vale a pena repetir a questão da licença poética ter o poder de resolver esses problemas. O que interessa apontar nessa matéria, contudo, vem em seguida.
b) Poque pobre quando nasce com instinto assassino... e vai até Papai eu quero ser policial quando eu crescer. Pois bem, o hino dos então jovens de classe média alta de Brasília, Renato Russo e seu amigo co-autor, enxergaram e reproduziram na música a repressão sofrida pela polícia da ditadura em pelo menos três aspectos. O primeiro é acertado e ataca a polícia de então, que por si só era opressora; o segundo ataque é contra a reprimenda ao uso de entorpecentes, o que também provocou os jovens (a repressão de entorpecentes continua sendo função da polícia por força da lei 11.343 de 2006, Lei das Drogas). Perceba que os policiais dessa época usavam viaturas de marca Veraneio, de cor preta, branca e vermelha, de onde vem o título Veraneio Vascaína. Revoltados com a situação nada fácil daquele cenário decadente da história do Brasil e com as ações de combate ao uso de entorpecentes, os rockeiros com pitadas de punk de Brasília elaboraram a letra dessa música incluindo o que vem a ser o terceiro e pernicioso aspecto da obra: o preconceito contra pobre com o corolário lombrosiano, sem qualquer rodeio: Porque pobre quando nasce com instinto assassino, sabe o que vai ser quando crescer desde menino. Ladrão p´ra roubar (outro pleonasmo), marginal p´ra matar . Papai eu quero ser policial quando eu crescer. Atinge preconceituosamente pobres e policiais. Não é difícil perceber a origem da inspiração quando se tem em mente o que já disse acerca do contexto sócio-econômico de Renato Russo e Flávio Lemos, ou seja, jovens de classe média alta, moradores das nobres quadras da Asa Sul e do Lago Sul de Brasília, respectivamente. Por outro lado, seria pedir demais que os dois guris, no bom sentido, pudessem apontar quais eram os fatores de poder que regiam as forças policiais daquele tempo. Não são os pobres que nascem com instinto assassino. Se alguém nasce assim é questão séria para a biologia, antropologia e psiquiatria. A minoria dos poderosos do mundo é que sempre promoveu saques a cidades inteiras, países e ao mundo. Geram má distribuição de renda e falta de recursos públicos para a educação, a segurança e a saúde. O pior é que esses sim, nascem em berços de ouro e tem a melhor educação possível. Como explicar se tem, então, instinto assassino por reproduzirem as maldades e mazelas políticas por tradição herdada pelos pais, avós e bisavós? Mesmo nesse caso repudiamos qualquer tese lombrosiana ao contrário, apontando ricos com gens criminosos. Tá amarrado! Certo é que quando assim procedem reproduzem o que fizeram seus antepassados poderosos e, obviamente , matam de fome, de raiva e de sede! Hospitais sem médicos e sem remédios, a fila do INSS e a falta de professores fazem parte do quadro que promove situações de morte, terror e pânico. E todo um sistema há muito montado maqueia a situação de desigualdade, o que engloba a justiça, a mídia, a polícia e outros meios. Isto irá clara e lamentavelmente prender e apontar o pobre como responsável pelas tragédias sociais. Inclusive, a repressão. Infelizmente o jargão histórico pode muitas vezes ser aplicado, pois, o povo que não conhece sua história está condenado a repetí-la. E não há novidade para a civilização da atualidade. Quer na história contemporânea, quer na antiga, a situação se repete . O Padre e escritor da literatura brasileira, Antonio Vieira, há muito denunciara (século XVII) em seus Sermões que no Brasil as autoridades prendiam ladrões de peixes e deixavam seguir livres os que saqueavam cidades inteiras. Os jovens compositores de Veraneio Vascaína certamente não escreveriam com essa mesma ótica caso conhecessem as teorias de Cesare Lombroso, que muito serviram à cúpula da política italiana e todo o mundo positivista de sua época. Em nossos dias podemos ver resquícios da ridícula teoria de Lombroso nos quatro cantos da Terra. Nada fácil, então, defender Veraneio Vascaína, quando se tem informação histórica e o mínimo de interpretação da letra da música em seu mais profundo significado, talvez totalmente desconhecido até hoje pelos autores. Loro Jones tentou a defesa e desistiu, mesmo tendo suporte de um publicitário fã das bandas de Brasília, porém, sem qualquer informação adicional que afastasse a matéria do preconceito contra os pobres e desfavorecidos. Se se informassem devidamente sobre quais eram os fatores de poder que regiam e continuam regendo a polícia, a política e encarceram os pobres em detrimento da liberdade dos criminosos de colarinho branco, abandonariam rapidamente a tese. Ou não. Justo Veríssimo, personagem que odeia pobre, criado por Chico Anísio para ironizar quem assim procede, com certeza abraçaria essa infame tese. E mais. Tais fatores que oprimem a classe pobre são os mesmos que deixam passar pelo salvo conduto da impunidade governadores e banqueiros corruptos, no mesmo sentido apontado por Antonio Vieira. Se alguem duvida, pergunte: Quem viu preso qualquer dos poderosos dos mensalões ? Foram Arruda, Prudente, Brunelli e Eurides presos por sentença condenatória transitada em julgado? Daniel Dantas, Genebaldo, João Alves etc. etc. etc. foram condenados e punidos ? Portanto, jovens, senhoras e senhores escritores de banda de rock, grupo de samba ou seja lá o que for. Poetas ou artistas plásticos. Viva a crítica! Faz pensar. Pobre, minha gente (esse minha gente é para lembrar Fernando Collor mesmo), é reproduzir conteúdo de preconceito contra quem quer que seja e sequer perceber o que se está fazendo ou se dispondo a fazer. Pobre não nasce com instinto assassino, se não nos livros de Cesare Lombroso. O cometer infrações e crimes não tem classe ou cor certa. Humanos cometem indistintamente infrações, independente de condições menos ou mais favoráveis. E Veraneio Vascaína em um país mais atento e aculturado há muito já teria sido devidamente denunciada por qualquer pessoa melhor informada, pelo lamentável conteúdo de preconceito explícito e descarado disfarçado de denúncia na letra, cujo início vem vindo e apontando ter pleonasmo, cacofonia e discriminação.
por Rogério Águas